
"Confesso que não é muito fácil escrever um texto que retrate a sua vida, suas peculiaridades, mas eu aceitei o desafio e prometo não decepcionar. Quando me falam “você é uma pessoa especial” eu logo digo “sou mesmo”, e isso não é por falta de humildade ou por me achar superior aos outros. Aceito o título porque eu realmente sou especial. Sou PCD (pessoa com deficiência), esta sigla é usada para se referir às pessoas com que possuem limitações permanentes, sejam elas visual, auditiva física ou mental. Sim você vai me olhar e vai procurar onde está o defeito, e eu vou logo dizendo que o defeito está em você por não conseguir enxergar além da aparência
Eu sou deficiente visual, mais conhecida como visão subnormal. Calma que vou explicar! Na minha gestação a minha mãe contraiu uma doença chamada toxoplasmose, essa doença é uma infecção provocada por um protozoário e diversos animais podem ser os transmissores como gatos, suínos, bovinos e aves, o gato ainda é o transmissor com maior potencial. Isso talvez explique meu amor incondicional por cachorros (risos). Esta doença todas as pessoas podem contrair, mas no período gestacional, dependendo do estágio de desenvolvimento do feto, a toxoplasmose pode deixar inúmeras sequelas na criança. A toxoplasmose congênita, transmitida pela mãe, pode ocasionar ao bebê alterações oculares (cegueira parcial ou total), retardo mental, problemas no fígado e baço e até mesmo o aborto. Hoje um dos primeiros exames que se faz em uma grávida é o da toxoplasmose.
Graças a Deus minha mãe contraiu a doença quando eu já estava quase pronta pra nascer. Isso me deixou uma pequena sequela considerando todos os riscos a que eu estava submetida. Daí vem a nomenclatura visão subnormal: do meu olho esquerdo eu enxergo apenas vultos e do meu olho direito tenho em torno de 50% de visão. A minha deficiência é praticamente imperceptível. Eu era um milagrezinho chegando ao mundo, já que chegaram a falar para os meus pais que eu seria totalmente cega.
É estranho falar isso num texto onde muitas pessoas podem parar para ler, mas eu acho que o mais bacana de falar é que apesar de todas as minhas limitações, de algumas dificuldades, eu aprendi a viver e a viver do meu jeito. Eu nunca deixei de brincar quando criança, sempre frequentei uma escola normal, a única dificuldade ficou para os colegas pois eu precisava sentar mais na frente e eu sempre fui um pouco altinha. Claro eu sofri bullying e muito, mas isso não me paralisada. Nunca me faltaram professores e colegas que me ajudaram, aos quais eu sou eternamente grata. Eu aprendi a ver a vida com outros olhos, com os meus olhos, um olhar mais fraterno, mais bondoso, mais ingênuo porque não? Mas do meu jeito. Poucas pessoas sabem sobre a minha deficiência, contava pras pessoas que eu confiava e pra quem eu sabia que poderia me ajudar. E olha que nunca me faltaram essas pessoas! Fiz muita festa, me diverti, mas sempre pedia que me avisassem sobre os degraus. Ah, os degraus! Ódio mortal por eles. Como não tenho muita noção de profundidade os degraus sempre foram meu terror. O bom é que eu sempre tinha uma mão amiga pra me avisar.
Eu não posso deixar de falar sobre o papel que a minha família teve neste meu processo de desenvolvimento. Apesar de existir a superproteção normal que recai sobre qualquer filho único, sim porque minha mãe não pôde mais ter filhos devido à doença, eu até que sobrevivi bem. Meus pais sempre me incentivaram a ser uma pessoa normal, a me desenvolver como um todo. No fundo sempre tive meus pais como meus melhores amigos e maiores incentivadores. Eles fizeram tudo que podiam para que eu pudesse ter a melhor vida que um deficiente visual pode ter. sou muito grata pois sei que eles criaram uma pessoa de caráter, com valores concretos e que me ensinaram tudo que eu precisava saber sobre a vida.
Não pense que sou esnobe se passar por mim na rua a uma certa distância e eu não te cumprimentar, não é charme, é falta de visão mesmo. Não espere que eu leia textos muito pequenos ou que eu veja tal episódio lá longe. Todos nós temos limitações, a minha é esta, enxergar diferente. E o melhor de tudo é que nunca me faltaram anjos pra me ajudar, pessoas que despuseram do seu tempo pra me ajudar a achar um livro na biblioteca, pra esperar o Uber, pra ler o cardápio do bar. Na academia os exercícios de equilíbrios são meio desequilibrados (risos). Talvez a única limitação real que eu tenho é que não posso dirigir, mas acredite: fui fazer o teste de visão e claro que não passei, mas isso não me abalou em nada. Eu sempre usei óculos e hoje me acho linda com eles, aliás eu sou muito vaidosa, amo ser loira. Eu tenho uma vida igual a de todas as outras pessoas deste universo. Tenho que trabalhar pra pagar contas, tenho que batalhar se quero conquistar algo, tenho que plantar coisas boas para ser feliz. Eu fico triste, eu choro, eu sinto saudade, eu tenho amigos, um amor. Alguma semelhança com a sua vida?
Nunca me faltaram pessoas que me viram além dessa pequena falha de fábrica e resolveram olhar para o que sou, para o caráter que construí, olharam as batalhas que ganhei ao longo da minha vida, aos amores que gostaram de mim além da minha aparência e me olharam com os olhos do coração. Eu concluí duas graduações e amo estudar. Meu oftalmologista, que me atende desde os três anos de idade sempre diz: tu fez e faz tudo isso porque tu tem força de vontade, porque se fosse só pelo que tu enxerga não tinha ido tão longe.
E eu acredito sim que Deus nos dá uma missão e durante muito tempo eu me questionei, esbravejei, mas enquanto eu fazia isso eu percebi que estava desperdiçando a minha vida. E quando entendi que o meu enxergar é diferente eu compreendi que realmente "o essencial é invisível aos olhos". E quem tiver que estar comigo, do meu lado, vai estar, porque realmente sabe e entendeu o meu valor no mundo e na sua própria vida.
Hoje eu consigo ver que Deus não me deu uma visão completa porque Ele queria que eu visse além, que eu percebesse as coisas, os sentimentos, as pessoas além do que realmente são. E acho que por isso ganhei o dom de escrever, de falar sobre os sentimentos, sobre as dores dos outros, sobre as minhas dores, porque eu ganhei a dádiva de olhar diferente. Cada um tem sua história, sua trajetória e poucos entendem porque caminham e para onde vão.
Há pouco tempo uma pessoa me disse que eu podia, que eu podia ser tudo que eu quisesse, ter tudo que eu desejasse, que minha deficiência deveria servir de impulso pra eu chegar mais longe, e eu resolvi acreditar nessa pessoa, uma pessoa que me mostrou o caminho. Essa pessoa me viu por trás da minha dificuldade, da minha limitação e me fez abrir os olhos pra quem eu sou de verdade. Eu ainda não cheguei onde quero, mas estou indo para lá com certeza.
Eu não vou enxergar nem mais e nem menos, tenho o mesmo percentual de visão que tinha quando nasci, claro eu tenho ferramentas que me auxiliam. Se não como eu faria para encher a sala aqui de casa de livros? Eu amo ler. Eu vou poder ter filhos sem sequela alguma. Eu sou uma pessoa normal, com os mesmos sonhos de muita gente, com os mesmos medos de muita gente, mas com a certeza de que estou cumprindo direitinho a tarefa que Deus me deu quando decidi vir para cá: ser diferente e fazer a diferença."
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Descrição da imagem: uma fotografia colorida de uma mulher de costas, à direita da imagem, com longos cabelos loiros, usando uma blusa cor cinza, está abraçando-se e encontra-se sentada na grama de um morro. Ela está sozinha observando o pôr do sol ao fundo, que está à esquerda da imagem.
Postagem por Sofia G. Sangalli
Texto: Gisele Ribeiro
Texto lindo. Ao mesmo tempo em que narra a história da autora, mostra sua força de vontade e amor pela vida, acaba por nos inspirar a fazermos o mesmo com a nossa vida: olhar além das nossas deficiências, pois, sim, todos temos uma, seja do tipo que for.
ResponderExcluirVinicius
São Chico/RS