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Tradutora Intérprete na Educação Infantil: uma nova roupagem

     O texto a seguir relata a experiência de atuar como intérprete de Libras na Educação Infantil. De 29 de agosto à 05 de dezembro de 2012, acompanhei a prática de estágio curricular de uma acadêmica surda em uma escola de Educação Infantil. Inicialmente surgiram dúvidas por parte da direção da escola e orientação de estágio quanto à aceitação das crianças em relação à professora surda e a presença do intérprete, porém no decorrer do trabalho estas foram percebendo o quão receptivas as crianças estavam sendo.      Aos poucos as crianças foram se adaptando e criando estratégias para interagir com esta professora, para elas tão especial: com o decorrer das aulas, passaram a se dirigir diretamente a ela, tocavam seu braço para chamar sua atenção ou chamavam-me para que traduzisse os diálogos. Ao mesmo tempo em que as crianças puderam estar em contato o tempo todo com a Libras, a estagiária pode desenvolver seu estágio curricular. O desafio proposto por este estágio veio para inovar uma área pouco explorada pelos surdos, mas que pode ser o ponto de partida para um novo campo profissional através dos ganhos que se pode ter ao aproximar duas culturas tão distintas. A acadêmica em questão, aguçada pela curiosidade de experienciar o contato com outra realidade, sentiu-se desafiada, e teve seu desejo respeitado. Não temos como negar a ela este direito, afinal, o que a impede?! A diferença linguística e cultural? Segundo SKLIAR (1995, p. 16): “Respeitar a pessoa surda e sua condição sócio linguística implica considerar seu desenvolvimento pleno como ser bicultural a fim de que possa dar-se em um processo psicolinguístico normal.” 
      O contato entre a língua oral e a de sinais entrelaça experiências e vivências que ultrapassam as barreiras da comunicação. Certamente, a surdez não foi empecilho na sua prática. A forte expressão e a capacidade de percepção visual aliada à presença do intérprete, garantiu o diálogo entre as duas línguas, e a diferença linguística não foi fator limitador. 
      Pensando na atuação como tradutora/intérprete, um dos principais desafios foi possibilitar às crianças entenderem o meu trabalho, pois inicialmente estas viam-me como professora auxiliar e não como intérprete. Aos poucos a acadêmica foi esclarecendo as dúvidas e inseguranças e, como numa peça de teatro, cada um foi conquistando o seu papel. A professora estagiária deixava bem claro para as crianças que, por ser surda, precisava do acompanhamento de uma intérprete para que a comunicação acontecesse. As crianças demoraram alguns encontros para compreender, pois queriam se comunicar diretamente com ela. Em algumas situações questionavam-me: “não estou perguntando a você, mas para ela, por que você responde?!” Nestes momentos, a explicitação do papel de cada um era destacado. Em alguns momentos, foi difícil conter as crianças para que não falassem ao mesmo tempo, mas a tradução precisava ser garantida e aos poucos foram se habituando, através de regras estabelecidas como, por exemplo, levantar o braço antes de falar.
      Posso dizer que foi um trabalho que exigiu de mim muito mais que no trabalho corriqueiro, extrema concentração e atenção. Realizar o trabalho de tradução Libras/Português e Português/ Libras em uma turma com 9 alunos, com idades entre 4 e 5 anos, não foi uma tarefa simples, já que estes interagiam o tempo todo com os colegas e com a professora. Todas as falas, por mais singelas, precisavam ser traduzidas para garantir a interação entre a professora surda e a turma de ouvintes. A expressão e a mudança de voz ao traduzir as histórias e contos infantis, a entonação de voz mais firme para demonstrar uma ordem ou um descontentamento. Situações que parecem óbvias na profissão de tradutor/intérprete, mas que na Educação Infantil ganharam uma nova roupagem. 
     Acredito que esta turma de crianças tenha sido privilegiada, pois pode vivenciar momentos únicos, em função da raridade de trabalhos nesta área. O ganho foi imensurável, pois a presença de alguém que domina uma segunda língua, neste caso a Libras, traz à criança ouvinte a possibilidade de conhecer um universo ainda pouco explorado. A inclusão social e a expressão corporal foram o foco deste trabalho. Certamente, esta experiência será sempre lembrada como uma das mais prazerosas na minha trajetória de tradutora/intérprete. Vivenciar estas situações de interação entre duas culturas tão distintas deixaram em mim inquietações que daqui em diante passam a ser objeto de estudo.


Referência: SKLIAR, Carlos. A Surdez: um olhar sobre as diferenças. Porto Alegre: Editora Mediação, 1995.


Postagem: Ana Lúcia Gil Terres ( Tradutora / Intérprete de Libras).

Comentários

  1. Olá, meu nome é Daieli Althaus, sou Professora da Educação Especial e atualmente trabalho no Colégio de Aplicação - UFSC de Florianópolis.
    Estou concluindo o curso de Especialização em Educação de Surdos pelo IFSC-Palhoça e minha pesquisa é sobre a Atuação do Professor de Libras na Educação Infantil. Preciso muito encontrar Professores de Libras que atuam ou já atuaram com ensino de crianças de 0 a 6 anos. Se você já atuou nessa faixa etária ensinando Libras peço que responda um questionário muito simples e rápido. É alguns minutinhos do teu tempo que irá colaborar para que essa pesquisa seja realizada. Se você conhece algum professor me envie o contato, por gentileza. Está sendo muito difícil encontrar Professores de Libras com experiência na Educação Infantil.
    Desde já agradeço. Grande abraço.

    Segue o link do questionário

    http://goo.gl/forms/6zAnMpzyBC

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